Garotas do ABC – Aurélia Schwarzenega (2003) é o décimo terceiro longa de Carlos Reichenbach – cineasta brasileiro que dirigiu filmes como Falsa Loura; Dois Córregos e As Libertinas. Originalmente tratavam-se de dois filmes: Sonhos de Vida e Vida de Sonhos. Posteriormente ensaiou-se o projeto para uma micro-série televisiva intitulada ABC – Clube Democrático. Todos esses projetos foram remexidos e resultaram no longa. Talvez por isso encontremos algumas falhas no roteiro.
As personagens de destaque são: Aurélia (Michelle Valle), moça negra, protagonista e fã de Arnold Schwarzenegger; Paula Nélson (Natália Lorda), espécie de líder das proletárias, que tem problemas de relacionamentos com homens, respeitada na fábrica e fora dela por seus ideais libertários em relação à política e trabalho; Antuérpia (Vanessa Alves), iniciante tardia no mercado de trabalho, que busca recuperar seu filho tomado por sua sogra; Suzana (Luciele Di Camargo) que provoca pequenos acidentes, mutilando seu corpo, para conseguir indenizações e assim ter uma vida melhor.
O “vilão” da história é Salesiano de Carvalho (Selton Mello), filho do dono de uma pedreira, advogado, líder e mentor intelectual de uma tribo urbana, definido por seus integrantes como “grande cérebro”. O grupo de Salesiano é racista, xenófobo e homofóbico. O cenário escolhido para a realização do filme foi a região do ABC paulista, conhecida por ser tradicionalmente industrial. O local é considerado o berço do movimento sindical no Brasil, mas também viu surgir os primeiros grupos intolerantes inspirados pela cultura proletária, visando o afastamento dos negros e nordestinos dos postos de trabalho. Entre eles podemos destacar os “Carecas do Subúrbio” e “Carecas do ABC”.
Os Carecas do Subúrbio (CS) surgem na Zona Leste de São Paulo. Enquanto os Carecas do ABC (CABC), na região que engloba as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, nos anos de 1983-1984. Apesar de nascidos em contextos semelhantes, tais grupos são diferentes na organização. Enquanto os CS são nacionalistas, aceitam mulheres em suas fileiras e não são filiados a nenhum partido político, os CABC são declaradamente integralistas e não permitem mulheres no movimento.
Esses grupos tendem a ser plurais nas opiniões, mas buscam um mesmo objetivo: violar as regras e costumes da sociedade na qual vivem. A partir da atuação desses movimentos nos subúrbios de São Paulo, Carlos Reichenbach desenvolve um roteiro voltado para a atuação de grupos aos moldes neonazis no ambiente proletário do ABC. Mas, após alguns cortes, o foco do filme passa ser a difícil vida das garotas operárias, principalmente a de Aurélia, moça de família conservadora, cujo namorado é Fábio (Fernando Pavão), rapaz branco, de família classe média, integrante do grupo racista liderado por Salesiano.
A película é dividida em duas partes: O Trabalho e O Tempo Livre. O primeiro tópico retrata o ambiente operário, a hierarquia, a hostilidade, o movimento sindical e o discurso intolerante do grupo de Salesiano. A fábrica onde as garotas trabalham é o cenário principal nesse primeiro momento. Ali assistimos Paula Nélson liderando e protegendo as meninas, mas recusando-se a participar do movimento sindical por achar que estará vinculada a um partido e não defendendo a causa das operárias. É percebido preconceito dentro da própria fábrica, quando algumas trabalhadoras não aceitam almoçar com as operárias que à noite fazem programa ou ainda não respeitam as escolhas das companheiras: uma é caçoada por ser virgem, a outra por começar tardiamente na profissão.
O movimento sindical é representando por um professor, que tenta atrair Paula Nélson para participar da política. Há ainda uma representação do movimento anarquista com o jornalista Nelson (Ênio Gonçalves). No entanto, não há aprofundamento em nenhum destes personagens.
Por sua vez, o movimento intolerante é composto por Salesiano de Carvalho, Fábio (figura que não tem muita influência no grupo), os trogloditas, Alemão (Milhem Cortaz) e Ruggero (Fábio Ferreira Dias), ambos metalúrgicos e Nicánor (Eduardo Sofiati), um jovem contador, religioso, de pouca opinião na gangue. O diretor sugere uma espécie de estereótipo desses grupos intolerantes, nos quais há um líder e os outros o seguem como se ele fosse o ser “supremo”.
Toda vez que Salesiano de Carvalho se pronuncia há uma festa, principalmente dos trogloditas do movimento. É importante observar que as indumentárias dos personagens são bem distintas. Uns usam terno e gravata, outro tem o estilo dos motoqueiros de gangues como “Hell’s Angels” e apenas um tem a cabeça raspada e usa jaqueta bomber – indumentária frequentemente utilizada por skinheads. É como se o diretor quisesse mostrar a heterogeneidade dentro do movimento, além de colocar Carvalho como pensador solitário.
Apesar de toda a contradição existente dentro do grupo liderado por Salesiano de Carvalho, a característica predominante é de um movimento integralista, uma prova disso é o símbolo ? (Sigma) – adotado pelo Integralismo por simbolizar a soma dos finitamente pequenos, a integração de todo o povo brasileiro e a soma das forças coletivas com Deus. Tal símbolo aparece em algumas cenas do filme, inclusive na sequência final. Nacionalista, o mentor do grupo, afirma: “A lei acima do homem, a ordem acima da lei, o direito acima da ordem e o Brasil acima de tudo”.
A segunda parte do filme, O tempo Livre¸ versa sobre o Clube Democrático, no qual as moças se divertem com a música Soul, colocada como música predileta de Aurélia. É neste mesmo ambiente que ocorre a agressão das operárias por parte do grupo de Salesiano de Carvalho. Após a briga a gangue intolerante se desfaz e Salesiano de Carvalho é abandonado por todos que o acompanhavam inicialmente. O diretor mostra que esses grupos não estão solidificados, ao menos, não em um país como o nosso, no qual a miscigenação é a maior marca.
Outro aspecto interessante do filme é a presença de um justiceiro nordestino, utilizando elementos característicos de um vaqueiro: casaca, bolsa de couro e peixeira. Ao final do filme, esta espécie de “retirante sanguinário” mata os metalúrgicos pertencentes ao grupo de Salesiano. No entanto, antes de executar a ação, reza.
Reichenbach tenta mostrar todo o tipo de grupo intolerante existente no ABC paulista: os Carecas do Brasil, os do Subúrbio, os Skins tradicionais e mesmo os Integralistas. Entretanto, não obtém tal êxito. Talvez
consiga plan ar nos espectadores a vontade de saber mais sobre eles.
Diferente dos filmes Botas de Aço (2006), Tolerância Zero (2001), não há uma representação bem cuidada de tribos urbanas de postura neofascista. No entanto, foi uma atitude louvável do diretor, já que possivelmente é o primeiro filme nacional abordando esse assunto.
Há algumas falhas, principalmente por esta adaptação para o cinema ter cortados cerca de 45 minutos. Graças a isto, algumas coisas ficam sem explicação. Em um filme de ritmo inconstante, Reichenbach, demonstra como esses grupos preconceituosos são contraditórios e alerta aos brasileiros, para o fato de que, mesmo em um país que parece fazer questão de esquecer a presença do preconceito, do racismo e da intolerância, esses existem. E não apenas de forma latente.
Carla Darlem Silva dos Reis
Mestra em História pela Universidade Federal de Sergipe
Referências Bibliográficas:
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REICHENBACH, Carlos. GAROTAS do ABC. Dezenove Som E Imagens; Loc´All De Cinema E Televisão, 2003. (124 min.).
Esse texto foi originalmente publicado nos Cadernos do Tempo Presente [ISSN 2179-2143] e pode ser acessado através do link: https://seer.ufs.br/index.php/tempo/article/view/2751